domingo, 14 de junho de 2009

A Preparação para a Aposentadoria: O Papel do Psicólogo frente a essa Questão

Revista Brasileira de Orientação Profissional, 2005, 6 (1), pp. 53 - 62 53




Milena Rodrigues
Noelle Harumi Ayabe
Maria Cristina Frollini Lunardelli1
Luiz Carlos Canêo
Universidade Estadual Paulista, Bauru

RESUMO
O trabalho é a principal atividade do homem, visto que norteia e é integrante de sua identidade. Além disso, o trabalho é o principal regulador da vida, já que o sujeito organiza seus horários, relacionamentos familiares e sociais em função deste. Neste contexto, a aposentadoria, por representar a ruptura com o papel profissional formal, ao invés de ser vivenciada como um repouso merecido, pode ser uma situação ameaçadora do equilíbrio psicológico. Há que se destacar, entretanto, nuances e diferenças na significação e modos de enfrentamento, considerando-se a classe econômica e demais fatores culturais e sociais a que estão submetidos os trabalhadores. Compreendendo o papel do psicólogo nas organizações de trabalho enquanto profissional que atua na melhoria da qualidade de vida dos trabalhadores, o objetivo deste artigo é propor programas de preparação para a aposentadoria para refletir alternativas de enfrentamento de questões de desgaste psíquico que podem ocorrer nessa fase.

Palavras-chaves: significados do trabalho; aposentadoria; qualidade de vida.

ABSTRACT: Preparing for Retirement: The Role of the Psychologist in this Context
Work is the main human activity, since it guides and, at the same time, is part of people’s identity. Besides that, work is life’s main regulator, considering that individuals organize schedules and family and social relationships according to it. In this context, retirement can represent a rupture with the formal Professional role; instead of being lived as a deserved rest, it can mean a threatening situation to the client´s psychological balance. However, nuances and differences in the meaning and ways of facing such a situation must be highlighted, considering the economic level and the social cultural factors that workers are submitted to.
Considering the psychologist’s role inside work organizations as of a professional who aims to improve the workers’ quality of life, the objective of this paper is to propose programs reflection and preparation for retirement that include thinking of alternatives to cope with and face the situations of psychological strain that can occur in that period.

Keywords: work; retirement; quality of life.

RESUMEN: La Preparación para la Jubilación: El Papel del Psicólogo Frente a esta Cuestión
El trabajo es la principal actividad del hombre, puesto que orienta y es integrante de su identidad. Además, el trabajo es el principal regulador de la vida, dado que el sujeto planea sus horarios y sus relacionamientos familiares y sociales en función de él. En este contexto, la jubilación, por representar la ruptura con El papel profesional formal, al contrario de ser vista como un descanso merecido, puede constituirse en uma amenaza para el equilibrio psicológico. Hay que destacar, sin embargo, matices y diferencias en La significación y modos de enfrentamiento, considerándose la clase económica y demás factores culturales y sociales a los que están sometidos los trabajadores. Comprendiendo el papel del psicólogo en lãs organizaciones de trabajo como profesional que actúa en el mejoramiento de la calidad de vida de los trabajadores, el objetivo de este artículo es proponer programas de reflexión y preparación para la jubilación, a fin de mostrar las alternativas de enfrentamiento de cuestiones de desgaste psíquico que pueden ocurrir en esa etapa.

Palabras-claves: significados del trabajo; jubilación; calidad de vida.

De acordo com Santos (1990), em algumas civilizações que valorizam as atividades intelectuais, ser idoso é sinônimo de sabedoria e experiência, e, por isso, os indivíduos, ao chegarem nessa etapa da vida, não perdem o seu papel ativo. França (2003) corrobora esta idéia e a complementa, ao afirmar que nas culturas orientais o idoso é visto com respeito
e admiração, símbolo de experiência de vida, representante da prudência, do saber acumulado e da reflexão, em contraposição a outras culturas, principalmente as ocidentais, nas quais o idoso representa o velho, no sentido pejorativo de ser ultrapassado e descartável.
Ser velho na sociedade capitalista “É sobreviver. Sem projeto, impedido de lembrar e ensinar, sofrendo as adversidades de um corpo que se desagrega à medida que a memória vai-se tornando cada vez mais viva, a velhice, que não existe para si, mas somente para o outro. E este outro é um opressor” (Bosi 1994, p.18-19).
No modo de produção capitalista, que idolatra a produção e aliena o trabalhador do processo de produção, a aposentadoria é freqüentemente vivenciada como a perda do próprio sentido da vida, uma espécie de morte social. Ao se valorizar apenas aqueles
que produzem, deprecia-se o sujeito aposentado (Santos, 1990).
Esse tipo de lógica é o que tem sustentado a sociedade contemporânea caracterizada por profundas transformações de natureza econômica, política, social, cultural etc., objetivando prioritariamente a produção de bens e mercadorias, assim como a acumulação de capital. O mundo do trabalho vem sofrendo contundentes processos de mutações, gerando crescente desemprego estrutural, com eliminação de vários postos de trabalho, deixando os
trabalhadores cada vez mais em condições precarizadas (Antunes, 2005).
No modo de produção capitalista, as organizações têm terceirizado os setores, excluído os mais velhos e exigindo qualificação contínua de seus operários, fomentando a diminuição do operariado e o aumento do subproletariado, levando à fragmentação e à complexificação da classe trabalhadora, gerando legiões de desempregados ou subempregados (Antunes, 1997).
No entanto, para os que conseguem chegar na fase da aposentadoria, faz-se necessário alertar para a existência de diferenças no processo de significação e enfrentamento dessa etapa da vida, especialmente levando-se em consideração fatores pessoais, culturais, sociais e econômicos a que estão submetidos os trabalhadores. Pré-aposentados de países
desenvolvidos, por exemplo, com alto poder aquisitivo, que conseguiram acumular recursos financeiros, materiais e intelectuais durante a vida laboral, provavelmente atribuem significados e enfrentem o período da aposentadoria de maneira diferente de
trabalhadores de baixo poder aquisitivo, que se encontram em países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento.
As desigualdades sociais ficam ainda mais evidentes nesse período, afetando, portanto, diferentemente, os trabalhadores em função da posição hierárquica que ocupam, das condições intelectuais que possuem, do estado biológico de degradação ou conservação em que se encontram. O processo de envelhecer pode, portanto, ressaltar desigualdades
quanto à qualidade de vida e o bem-estar, considerando-se o sexo, a condição sócio econômica dos diferentes segmentos sociais potencializado, dessa maneira, a exclusão social (Debert & Néri, 2004).
Para Bosi (1994), a degradação senil começa com o nascimento e perdura por toda a vida. Nas relações de trabalho, esta degradação atinge não só o operário, mas também todos os outros profissionais de “maior prestígio”, considerando-se que o que move nossa sociedade atual é a competição e o lucro.
É fácil verificar o tratamento diferenciado que a sociedade capitalista tem dispensado a segmentos de aposentados de alto ou médio poder aquisitivo, quando comparado com aqueles que recebem salários inexpressivos. Os mais abastados, por representarem
um mercado consumidor em potencial, com possibilidades concretas de injetarem na economia importâncias financeiras significativas, são alvo preferencial de todo tipo de propaganda e sedução, tratados como um segmento representativo da “melhor
idade”. Além de dinheiro, que os qualifica como “consumidores desejados”, têm tempo para “aproveitarem” a vida, podendo gastar sem outras preocupações.
O mesmo não ocorre, entretanto, com a maioria da população brasileira que, em situação de
aposentadoria, fica à mercê de minguada remuneração e/ou de escassos benefícios sociais que beiram a imoralidade. Por não disporem do atributo qualificativo - “poder aquisitivo” -, condição “sine-qua-non” para estarem inseridos na sociedade de consumo, são desconsiderados pela lógica capitalista.
Assim, a perda do vínculo, com tudo o que representa “estar trabalhando”, pode ter influência na identidade pessoal, uma vez que a aposentadoria acarreta modificações nas relações instituídas entre o indivíduo e o sistema social. A aposentadoria traz para os indivíduos um conjunto de perdas que eram valores importantes, tais como o convívio com os colegas, o “status” social de pertencer a uma organização, o poder de exercer influência sobre os outros, assim como a própria rotina enquanto referencial de existência (Uvaldo, 1995).
Antunes (2005) enfatiza a importância do trabalho na construção do ser social, uma vez que o homem se produz e reproduz pelo trabalho. E é a partir do dia-a-dia do trabalho que ele se torna ser social, diferenciando-se de outras espécies.
A aposentadoria é uma fase que provoca mudanças e pode gerar ansiedades no indivíduo, considerando-se sua história na relação com o grupo social ao qual pertence. Sua identidade, como pessoa e como ser social, pode ficar ameaçada. É, ainda, um período de enfrentamento de outra questão: a de ser considerado velho.
Ser velho em nossa sociedade significa deixar de ser economicamente produtivo e, portanto, condição para ser desconsiderado e abandonado (Uvaldo,1995). Para Bosi (1994), muito mais que um destino, a velhice deve ser considerada como uma categoria social. Deste modo, o aposentado deverá reconstruir sua identidade pessoal através da interiorização de novos papéis e da busca de novos objetivos de vida, num processo de redefinição de sua vida, ao mesmo tempo em que deverá assumir essa nova fase, repensando o estigma de ser inativo nessa sociedade e estabelecendo novos pontos de referência. O objetivo deste artigo é, através de uma reflexão a respeito das competências necessárias ao psicólogo organizacional para uma prática emergente, fornecer subsídios teóricos que permitam elaborar um Programa de reflexão e preparação para a aposentadoria
como um programa de qualidade de vida.
Programas dessa natureza podem criar condições para que os futuros aposentados reflitam sobre os aspectos positivos e negativos dessa nova etapa, para que haja um enfrentamento mais consciente, tranqüilo, e que também habilite as pessoas a aumentar o controle sobre sua vida e sobre sua saúde, tanto física quanto mental.

O Papel do Psicólogo nas Organizações de Trabalho

Segundo Zanelli (1994), a trajetória da atuação do psicólogo organizacional no Brasil é predominantemente caracterizada como reprodutora de objetivos técnicos e sem muito poder de intervenção nos processos organizacionais decisórios, conseqüência direta de uma formação acadêmica reprodutora de técnicas. Em vista disso, para Bastos e Martins
(1990), torna-se necessária uma atuação mais abrangente e integrada desses processos que tenha como objetivo romper a atuação tradicional fragmentada, centrada no indivíduo e limitada à aplicação de testes para seleção, visando a uma atuação sistêmica, preocupada com o desenvolvimento e com o sistema organizacional como um todo. Assim, a partir da
visão desses autores, deve-se buscar uma relação mais saudável com o ambiente de trabalho, através de uma prática que priorize a promoção da qualidade de vida, caminho este que deve passar necessariamente por estratégias de desenvolvimento do indivíduo e de sua relação como membro de um grupo.
O modelo tradicional de atuação do psicólogo gera relações verticais dentro da organização, dificultando a percepção de possibilidades de integração no nível do planejamento estratégico, fazendo-o mantenedor ao invés de agente de mudanças, atuação
esta inconciliável com o paradigma emergente que coloca como ideal a participação e a transparência nas políticas da organização (Zanelli, 1994).
Ainda para o autor, dentro de uma política organizacional que busca superar esse modelo fragmentado de atuação, o papel do psicólogo, como um profissional de Recursos Humanos, seria o de auxiliar a organização a pensar em condições de trabalho que visassem à promoção de qualidade de vida dos trabalhadores. Buscar-se-iam estratégias para
facilitar às pessoas o contínuo desenvolvimento da tomada de consciência e a responsabilidade pelo desenvolvimento da própria saúde, abandonando atitudes aternalistas. Dentro desse novo paradigma, os programas de qualidade de vida constituemse como a base, caracterizados pela valorização da saúde mental do trabalhador.
Neste aspecto, o psicólogo, em seu exercício profissional, busca encontrar respostas para intervenções que promovam a qualidade de vida no trabalho, havendo a superposição da pesquisa com a intervenção.
Segundo Zanelli, Borges-Andrade e Bastos (2004), o escopo de atividades de pesquisa que
gerem intervenções, ou seja, a pesquisa-ação (criado por Kurt Lewin) é um exemplo clássico de recurso metodológico utilizado pelo psicólogo nas organizações, no sentido de identificar um problema relevante e envolver a comunidade organizacional para encontrar soluções que contribuam para a melhoria da qualidade de vida no trabalho.

Considerações Teóricas sobre Qualidade de Vida

Falar em qualidade de vida significa entrar no universo de um assunto atual e importante; porém, bastante polêmico e complexo. Atual e importante porque, nos últimos anos, muito se tem utilizado este conceito, de forma direta ou indireta e aplicado a várias áreas da vida, tornando-se uma expressão de uso comum, utilizado indiscriminadamente, sem um
aprofundamento adequado. Polêmico e complexo, pois envolve mudanças, condições e estilos de vida, bem-estar, necessidades humanas e de desenvolvimento social (Cardoso, 2000; Limongi-França, 2003).
Herzberg (1997) propõe uma teoria da motivação no trabalho na qual distingue motivação e satisfação.
Desse modo, a partir das necessidades humanas de sobrevivência condicionadas às necessidades biológicas básicas, surgem os fatores de satisfação ou higiênicos, tais como condições de trabalho, benefícios, política organizacional e relações interpessoais relacionados às necessidades psicológicas de auto-realização, encontram-se os
fatores motivadores ou de desenvolvimento, que englobam realização, reconhecimento e significado do trabalho, responsabilidade e progresso. Assim, averigua-se que a combinação desses dois fatores influencia diretamente a qualidade de vida no trabalho,
entendendo-se que esta representa a satisfação das necessidades básicas do ser humano e até de condições da organização, passando pelas necessidades secundárias do homem, com realce para a auto-realização.
Considerações semelhantes a essas são feitas por Fernandes e Gutierrez (1998, citado por Limongi-França, 2003) que evidenciam a importância da variedade, da identidade das tarefas, assim como do processo de retroinformação, enquanto variáveis que exercem influências sobre os comportamentos individuais no ambiente de trabalho, afetando, portanto, a qualidade de vida laboral.
Para Ballesteros (1996), qualidade de vida envolve bem-estar no domínio social, saúde física no âmbito da Medicina e satisfação no domínio psicológico.
De acordo com o autor, por maiores que sejam as dificuldades de definir essa expressão, não é difícil concluir que qualidade de vida não é sinônimo de qualidade do ambiente, de quantidade de bens materiais nem de saúde física. Distingue-se, também, de felicidade ou satisfação e não se reduz a condições externas de vida ou responsabilidade pessoal.
Não é transformá-la em uma questão interna ou externa, visto que é impossível separar o indivíduo de sua interação com o meio. Enfim, para este autor, a qualidade de vida diz respeito à maneira pela qual o indivíduo interage com o mundo externo, através de
sua individualidade e subjetividade, ou seja, a maneira como o sujeito é influenciado e como influencia seu ambiente. Desta forma, uma vida com qualidade é determinada pelo equilíbrio entre condições objetivas (renda, emprego, objetos possuídos, qualidade
da habitação etc.) e condições subjetivas (segurança, privacidade, reconhecimento, afeto etc.). A partir das considerações dos autores citados anteriormente, pode-se concluir que, para se compreender o significado da expressão qualidade de vida no trabalho, deve-se partir de um modelo de motivação que considere, necessariamente, tanto os aspectos da realização de necessidades biológicas, sociais e psicológicas.
Partindo-se desse princípio, torna-se fundamental pensar no pré-aposentado e na maneira como em nossa sociedade lhe é negado um espaço para ser útil, o que pode gerar adoecimento e desmotivação diante da vida, especialmente para segmentos
socialmente menos privilegiados. Desse modo, é necessário reverter este triste quadro em que estão inseridos esses indivíduos, investindo em condições que possibilitem a sua manutenção pessoal e familiar, de realização pessoal, de trabalho, de segurança
social. Para tanto, Cardoso (2000) aponta que é preciso redimensionar esse espaço, com o objetivo de se chegar à qualidade de vida para a realização de ações de significado social, que repercutirão no sentido da liberdade e da cidadania dessas pessoas.
Ao abordarmos a qualidade de vida no trabalho, faz-se necessário compreendermos o conceito de saúde. A Organização Mundial de Saúde (OMS) define saúde como “um estado completo de bem estar físico, mental e social”, e não somente como a ausência de doenças ou invalidez. Portanto, a saúde é “única no indivíduo e o trabalho clínico nos prova
diariamente que os fatores psicológicos afetam a saúde física gerando toda a patologia chamada psicossomática ... (e) as alterações físicas (...) provocam alterações mentais diversas (...). Além disso, tanto a saúde física como a mental estão por vezes condicionadas
com desencadeadores por circunstâncias sócio-culturais que crescem com o indivíduo”
(Guimarães, 1992, citado por Cardoso, 2000, p.79).
Neste enfoque, a qualidade de vida no trabalho vai além dos limites das organizações, onde existem relações de trabalho, e busca o bem-estar geral para o trabalhador em todos os ambientes em que vive, ou seja, procura monitorar as variáveis que abrangem o ambiente tecnológico, psicológico, sociológico, político e econômico do trabalho.
Além disso, Cardoso (2000) complementa a compreensão sobre qualidade de vida no trabalho, acrescentando a dimensão subjetiva que se refere à percepção que as pessoas têm de seu trabalho, a qual pode ser satisfatória e geradora de bem-estar social no ambiente de trabalho ou fora dele.
Assim, para se pensar em ações direcionadas à qualidade de vida do aposentado, é necessário compreender o que significa para um indivíduo se aposentar, qual o significado desse processo em sua vida; pois, a aposentadoria constitui-se numa etapa de transição
que pode significar uma ameaça ao seu equilíbrio psíquico, ao ameaçar a sua identidade como pessoa e como ser social. Faz-se necessário, então, que órgãos governamentais e não-governamentais estimulem a criação de programas de reflexão sobre a aposentadoria, por meio de organizações públicas e privadas de diferentes naturezas (entidades de classe,
instituições sociais, empresas, órgãos públicos etc.).

A Situação do Pré-Aposentado face à Aposentadoria

A aposentadoria, como qualquer situação de mudança, pode ser um evento desencadeador de ansiedade e ameaçador do equilíbrio psicológico da pessoa. Embora não exista unanimidade, vários autores, preocupados com esta problemática, buscaram elencar quais as variáveis que mais estão relacionadas a este desequilíbrio.
León (2000) afirma que o comprometimento da aparência pessoal, da saúde e do desempenho em relação à execução de algumas tarefas, mesmo que não atinja todos indivíduos, pode reforçar alguns preconceitos em relação aos aposentados, podendo
assim a aposentadoria ser visualizada como um demarcador temporal do envelhecimento.
Já, segundo Bruns e Abreu (1997), o envelhecer pode significar tornar-se descartável, como se fosse algo que possui uma duração programada e que, após um período de uso, vai para o lixo. Deste modo, parece que a sociedade capitalista estabelece um tempo útil de vida para as pessoas e que a aposentadoria possui um papel de dispositivo legal que o sistema criou para estabelecer esse limite. Em outras palavras, a aposentadoria concretiza esses limites do corpo que sofre as conseqüências de não ser reconhecido como produtor de mais valia, e, assim como uma mercadoria que tem seu tempo de uso vencido, deve ser retirada de circulação. Conforme Bosi (1994, p.79), “o velho sente-se um indivíduo diminuído, que luta para continuar sendo homem. O coeficiente de adversidade das coisas cresce: as escadas ficam mais duras de subir, as distâncias mais longas a percorrer, as ruas mais perigosas de atravessar, os pacotes mais pesados de carregar”.
Além do comprometimento físico, a aposentadoria pode também representar perdas materiais, psicológicas e sociais, como a queda dos rendimentos financeiros, desligamento dos colegas de trabalho, perda do status social que o trabalho proporcionava, entre outros, o que pode incidir na diminuição da auto-estima e da motivação, ocasionando
adoecimento mental que se reflete em crises depressivas, ansiedade, alcoolismo e até mesmo no suicídio.
Segundo Santos (1990), o modo como o indivíduo vivenciará a aposentadoria pode ser compreendido a partir da relação que o indivíduo estabeleceu, ao longo de sua vida, entre o papel profissional e o tempo livre, sendo que este, quando o sujeito se aposenta, pode ser direcionado para o crescimento individual ou apenas encarado como um tempo vazio e,
possivelmente, um espaço para a ociosidade. Um fator de extrema importância que reforça o caráter aversivo da aposentadoria, afetando a qualidade da transição, é, como aponta Ekerdt (1989, citado por Leon 2000), a falta de planejamento do futuro, seja pela falta de consciência da necessidade de planejar o futuro e a velhice, ou pela crença de que não há como controlar o futuro, o que pode ser considerado uma forma ineficaz de enfrentar a nova situação. Configura-se, assim, um estilo adaptativo contraproducente caracterizado pelo negativismo, dificuldade de se adaptar a situações novas e aversão a discutir qualquer assunto relacionado à aposentadoria.
Uma pesquisa realizada por Bruns e Abreu (1997) reforça a variável falta de planejamento como causadora de angústia e solidão na pós-aposentadoria, ao concluir que a realização pessoal fica sempre como um esboço de projeto para ser concretizado após a aposentadoria e, quando esta chega, as pessoas sentem-se surpresas e desencantadas por não saberem gerenciar criativamente e com prazer a existência sem uma ocupação profissional, mesmo quando a atividade antes exercida era executada com insatisfação.
Em resumo, a confrontação com o vazio deixado pelas horas antes dedicadas ao trabalho e o tédio do tempo desocupado, o afastamento ou a perda de relacionamento social com os colegas de trabalho, o medo do ócio, o papel social que a ocupação desenvolvida
representava e a perda de reconhecimento que dela advinha e, ainda, as dificuldades de adaptação a um convívio mais extenso com a família, podem constituir um período de ameaça ao equilíbrio mental do indivíduo.
Sabe-se que o modo de enfrentamento diante da necessidade de reestruturação da vida pode variar de indivíduo para indivíduo. Porém, com a autoconfiança diminuída e com um baixo grau de planejamento de vida pós-aposentadoria, além de preocupações financeiras e com a saúde, o período que antecede a aposentadoria pode vir a ser enfrentado com ansiedade e desencadear desequilíbrios tanto no aposentado como na estruturação de sua família e de seus demais vínculos. Segundo Zanelli e Silva (1996), na iminência da aposentadoria, os sentimentos se misturam e, por vezes, se contradizem, pois a possibilidade concreta
de parar de trabalhar conflita-se com o medo do tédio, da solidão, da instabilidade financeira e de doenças. Em decorrência de todos esses aspectos, com os quais o indivíduo se depara nessa fase de transição, alguns podem enfrentar essa ruptura com o trabalho formal de uma maneira saudável; porém, muitos, em decorrência de não saberem lidar com
as mudanças dessa nova etapa da vida, podem adoecer.
Para este autor, a transição que ocorre na aposentadoria pode ser facilitada, quando se promovem situações ou vivências grupais dentro do contexto organizacional, enquanto a pessoa ainda possui seu papel profissional e executa as atividades de seu trabalho,
e o rompimento brusco e repentino da rotina parece potencializar o início dos desajustes nas várias esferas da vida pessoal.
Dentro desse contexto, é fundamental pensar em ações para o pré-aposentado no contexto organizacional que impeçam sentimentos de inutilidade, evitando que a falta de reflexão faça com que a aposentadoria seja vivida sobre o prisma do adoecimento, inutilidade e ociosidade. Como profissional da saúde, o psicólogo organizacional, em equipe
multiprofissional (médico do trabalho, enfermeiro, assistente social, pedagogo etc.), pode propor e implementar políticas organizacionais que contribuam para a promoção da qualidade de vida do trabalhador. Um dos projetos, entre outros, que vem ao encontro do objetivo acima citado é o Programa de reflexão e preparação para a aposentadoria (P.R.P.A.)

Programa de Reflexão e Preparação para a Aposentadoria (P.R.P.A.): Algumas Contribuições para a Melhoria da Qualidade de Vida do Trabalhador

Da mesma maneira que os sentimentos despertados pela aposentadoria não são compartilhados por todos, não há muito espaço social para que tais questões possam ser discutidas e elaboradas. Nesse sentido, um Programa de reflexão e preparação para a aposentadoria (P.R.P.A.) visa a construir tal espaço, no qual possam ser trabalhadas maneiras de enfrentar essa nova etapa com melhores condições, com mais clareza e segurança.
Vale acrescentar que a Política Nacional do Idoso, através da lei nº 8.842 de 4 de janeiro de 1994, propõe a criação e a manutenção de programas de preparação para aposentadoria nos setores público e privado com antecedência mínima de dois anos antes do afastamento. Já o Estatuto do Idoso, através da lei nº 10.741 de 1º de outubro de 2003, estimula programas dessa natureza, ressaltando que devem ser realizados preferencialmente com antecedência
mínima de um ano, com o intuito de estimular o pré-aposentado a realizar novos projetos
sociais conforme seus interesses, esclarecendo também seus direitos sociais. Essas medidas demonstram que, apesar da pouca atenção de entidades governamentais, aos poucos a questão vem ganhando espaço.
Exemplo da preocupação atual com o assunto pode ser visto no estudo realizado por Feliciano e Lopes (2000) que investigaram sentimentos e cognições de funcionários administrativos e operacionais da Universidade Estadual Paulista (UNESP), sobre a iminência da aposentadoria, e, também, na experiência de implantação de um Programa de reflexão e preparação para aposentadoria (P.R.P.A.) realizado por Martins e Rocha (2003), respectivamente, na Secretaria da Administração da Prefeitura Municipal e na Polícia Militar, ambas no município de Bauru-SP.
De acordo com o modelo proposto por Zanelli e Silva (1996), para a elaboração de um Programa dessa natureza é necessário, primeiramente, realizar um diagnóstico, a partir de um levantamento de necessidades, com o intuito de conhecer aspectos psicológicos e sociais da população de pré-aposentados em questão, identificando suas cognições a
respeito de trabalho e demais âmbitos ligados às mudanças provocadas pela aposentadoria, tais como: relacionamento familiar, conjugal, sexual e com amigos; relação com o trabalho; ocupação do tempo e saúde. Esse tipo de investigação é importante uma vez que, segundo estes autores, os temas apresentados pelos participantes, quando agrupados em
categorias maiores, poderão orientar as intervenções futuras, direcionando o conteúdo a ser trabalhado e as reflexões propostas.
Segundo Zanelli e Silva (1996), esse programa é uma importante etapa de um processo que tem como objetivo principal a re-socialização do préaposentado, baseada no respeito ao ser humano e na consciência das modificações profundas que ocorrem no modo de viver desses indivíduos e da necessidade de reelaborar possíveis prejuízos que possam advir como conseqüência do rompimento brusco da rotina de trabalho. Dessa maneira, segundo Wilheim e Déak (1970, citado por Cardoso 2000), um programa pensado e elaborado nesses moldes deve aterse às condições subjetivas, fornecendo subsídios para que, a partir da reorganização do papel social, o indivíduo possa garantir segurança, reconhecimento,
sentimento de utilidade e valorização.
Entre os objetivos específicos que poderiam ser trabalhados destacam-se: a necessidade de proporcionar espaço para reflexão a respeito de possíveis alternativas de ação na aposentadoria, como o resgate da valorização do corpo físico e sua influência direta no bem-estar emocional; a importância da reelaboração de estereótipos, estigmas e preconceitos existentes em nossa sociedade, relacionados ao papel do aposentado; a influência dos vínculos, principalmente com a família, como um aspecto facilitador
nesse momento de mudança e a necessidade de refletir sobre a busca de novos projetos e auto-realização através da descoberta de potencialidades latentes (Zanelli & Silva, 1996).
Outro ponto a ser destacado em um Programa de reflexão e preparação para a aposentadoria é sua importância nas organizações, pois é o investimento na qualidade de vida do indivíduo que muitas vezes, preteriu sua vida pessoal e familiar para se dedicar
ao trabalho, e que, em breve, deixará a organização. Além disso, o que será, para um indivíduo que passou quarenta horas semanais no trabalho, o retorno definitivo para casa, que já possui uma dinâmica própria? Assim, um programa dessa natureza tem uma
extensão maior do que aparenta; pois, trará conseqüências também no âmbito familiar, possibilitando um melhor inter-relacionamento entre aposentado e familiares.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao se pensar na elaboração de um Programa de reflexão e preparação para a aposentadoria é de fundamental importância considerar que o objetivo principal deve ser a criação de condições concretas, de maximização do enriquecimento pessoal. Desse modo, um programa pensado nesses moldes é fundamental, no sentido de prevenir que a falta de planejamento cause possíveis angústias e conflitos emergentes com o término da carreira profissional, ensinando aos futuros aposentados que as possibilidades de ação não se esgotam com o fim da rotina de trabalho e sim que, a partir desses elementos, torna-se possível a construção da díade qualidade de vida e aposentadoria.
Ao investir na construção de ações de qualidade de vida nas organizações, a exemplo do Programa de reflexão e preparação para a aposentadoria, o psicólogo estará auxiliando na implementação de políticas que promovam o atendimento dessas necessidades,
especialmente em se tratando do bem-estar psíquico, exercitando a dimensão política e
educativa de seu papel profissional.
Além disso, o psicólogo tem o papel de pesquisador, de construtor de novos conhecimentos, ao investigar junto a trabalhadores de diferentes classes sociais o sentido, o significado de se aposentar, dado ao peso atribuído socialmente a essa condição, que
pode ser uma forma peculiar de sofrimento. Sofrimento este causado pelo sentimento de inadequação social e angústia quanto às perspectivas de sobrevivência.
Portanto, cabe ao psicólogo, em equipe multiprofissional, elaborar programas que contemplem variáveis importantes à qualidade de vida no trabalho e, especificamente, as questões relacionadas à subjetividade do trabalhador.


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Recebido: 16/08/04
1ª Revisão: 22/11/04
2ª Revisão: 12/07/05
Aceite final: 08/08/05

Sobre os autores
Milena Rodrigues é psicóloga formada pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), Bauru/SP.
Maria Cristina Frollini Lunardelli é doutora em Educação pela Universidade Estadual Paulista (UNESP),
Marília/SP e professora da área de Psicologia Organizacional e do Trabalho da UNESP, Bauru/SP.
Luiz Carlos Canêo é doutor em Educação pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) de São
Carlos/SP e professor da área de Psicologia Organizacional e do Trabalho da UNESP, Bauru/SP.

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